Leia trecho do novo livro de Simone Campos
"Mulher de pouca fé" reconstitui formação religiosa da escritora carioca
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Simone Campos
“O poder da palavra”
Orando no microfone de olhos fechados, o pastor declamava: “Você, que sente que não se encaixa em nenhum lugar. Você, que se sente sozinho na multidão; no trabalho, na escola, você até pode andar com um grupo, mas está sempre deslocado. Você, que sabe que as pessoas fazem intrigas e comentários maldosos pelas suas costas! Você, que vive pra baixo, aflito, cheio de maus pensa mentos… É, você mesmo! Jesus está falando com você! Deixe Jesus tocar o seu coração. Ele é o verdadeiro amigo.”
Pregações como essa eram comuns. Eu pensava: como é que pode? Me encaixo direitinho no que o pastor está falando. É uma sensação reconfortante ouvir alguém que sabe o que você está ando. Se sentir compreendida. Se sentir acolhida. Então você acredita. Acredita naquele discurso direcionado às massas, na linguagem da publicidade, no orador se comunicando em segunda pessoa com cada espectador e usando pausas e palavrinhas matreiras para segurar a atenção. Você acredita que Deus, Jesus e o Espírito Santo estão falando pela boca daquele homem de terno. E continua na Igreja.
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Eu já havia parado de rezar o pai nosso e a ave maria antes de dormir e começara a dizer a oração improvisada, porém sincera, como ensinavam na Arca. Deus me inspirava, e comecei a ficar boa em criar orações. Ou meu cérebro neuroatípico percebera o padrão, identificara a fórmula e ara a combinar as peças à sua maneira.
Porém, quando eu tinha um pesadelo e acordava assustada no meio da noite, meu pai ou minha mãe vinham fazer uma oração em voz alta comigo, à moda evangélica, usando a segunda pessoa para falar com Deus. “Tira todo o mal”, diziam. “Remove todo espírito, presença, força e influência maligna.” Ao orar, meu pai gostava de ir mais longe na lista de potenciais inimigos do sono: listava até “principados” e “potestades”, poderosos seres das trevas capazes de influenciar um país inteiro ou os próprios governantes. Eu sentia muita ternura por esse carinho zeloso e um pouco fantástico dele.
Uma das pregações de que minha mãe mais gostava e repetia para os outros era sobre o “poder da palavra”. Todos deviam tomar cuidado com a língua, tanto no sentido de não espalhar fofocas e boatos, como no sentido de atentar para os nomes que se dão a coisas e pessoas. Palavrão era inissível — era louvar o diabo. Até mesmo dizer “maldita porta empenada” ou “droga de televisão” era proibido: você estaria lançando uma maldição sobre esses objetos, pois palavras têm poder. Especialmente você, pai ou mãe, não deveria amaldiçoar seus filhos xingando os de “capeta”, “desgraçado” ou “danado”, nem durante uma briga. Isso atrairia para eles o capeta, a desgraça e a danação. Chamar seu cônjuge de “imprestável” seria decretar o destino dele como tal. “Somente palavras boas”, dizia o pastor, “ou então domine a língua para nem dizê las”. Fofocas, prática quase sempre associada a mulheres, também eram condenadas no púlpito. O culto evangélico não tinha o responsório próprio da liturgia católica, mas, ao pregar, cada pastor da Arca podia usar os marcadores informais que bem lhe aprouvesse para capturar a atenção do público, embora, na verdade, todos se espelhassem na linguagem, nos maneirismos e no sotaque do bispo fundador. E tome: “Ô, glória!”, “Senhor, meu Deus!”, “É ou não é?”, “Tô certo ou tô errado?” e “Ou tudo ou nada” para pontuar pregações e orações; conceitos como “quebrantar” o coração, “voltar ao primeiro amor” por Cristo e ser “mais que um vencedor”; no encerramento das reuniões, “Jesus te abençoe rica e abundante mente”, seguido de um apelo para ele “nos levar em paz até o nosso lar” — bênção muito bem vinda no violento Rio de Janeiro dos anos 1990. Outras expressões vinham do mundo dos negócios, como a célebre “de porteira fechada”, que até hoje não saiu de moda entre líderes, políticos e fiéis da Arca. Havia slogans — em diferentes épocas — que todos na Arca adotavam como um código de pertencimento: “Sê tu uma bênção”, “Jesus te ama!”, “O sangue de Jesus tem poder”.
A retórica de fundo virilizante também marcava presença: os maus cristãos eram tachados de molengas, medrosos, fracassados, encostados ou moscas mortas, em oposição aos cristãos com atitude, destemidos, guerreiros, batalhadores e cascasgrossas: os cristãos vencedores. Afinal, o próprio Cristo nunca foi molenga; ele quebrava tudo no templo se fosse preciso, munido da ira santa, o único tipo de raiva que se justificava. Jesus Cristo era um vingador! Ele lutava por nós! Imitando o, nós precisávamos agir, tomar uma atitude, enfrentar o problema, ir lá e fazer — em nome de Jesus! Sem reclamar, trabalhando e tendo fé. E, com Cristo, daríamos conta do recado.
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Quando um bispo fazia sucesso com seus bordões e cacoetes, arrebatando multidões e ganhando destaque, seu jeito de falar — pausas, vocabulário, ritmo — acabava sendo reproduzido por outros pastores até contaminar todos os discursos da Igreja, tornando se endêmico.
O discurso da Arca era uma colcha de retalhos que seguia um ciclo: expressões idiossincráticas entravam na moda, eram apropriadas como bem coletivo e, depois, com o desgaste, caíam em desuso. Sempre renovados, esses termos e técnicas retóricas iam escoando do bispo para o pastor, deles para os compositores de louvores, depois para os obreiros e, por fim, para o rebanho. De vez em quando o sentido era contrário: um pastor emplacava uma expressão, que ava a ser reproduzida pelos bispos. O ser humano é realmente muito bom em imitar.
Sobre a autora e o livro
Simone Campos nasceu no Rio de Janeiro, em 1983. É doutora em literatura pela UERJ e autora de “No shopping” (7 Letras, 2000), “A feia noite” (7 Letras, 2006), “A vez de morrer” (Companhia das Letras, 2014) e “Nada vai acontecer com você” (Companhia das Letras, 2021), entre outros livros. Para o jornalista Chico Felitti, “Mulher de pouca fé” mostra que a palavra de Simone “tem poder e é delicioso viver o Rio dos anos 1990 na perspectiva de uma criança autista que encontra sentido pra vida numa igreja evangélica”.
“Mulher de pouca fé”
• De Simone Campos
• Companhia das Letras
• 240 páginas
• R$ 89,90 (e-book: R$ 44,90)
• Nas livrarias a partir da próxima semana