Pensar reúne Fernanda Teixeira Ribeiro e Ligia Diniz
Autora do romance "Cantagalo" e ensaísta de "O homem não existe" refletem sobre os seus livros e a experiência feminina na literatura
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Siga no“A gente vai lendo e meio que vivendo várias vidas. E empresta nosso corpo para esses personagens. Fiquei pensando no fato de eu ter dado o meu corpo, a minha imaginação para tantos personagens masculinos, com as suas aventuras masculinas. Isso entrava em embate com a minha vida de mulher, no meu presente histórico, no meu lugar. Refleti sobre o que significava a tensão entre esses dois tipos de experiência.”
Ligia Gonçalves Diniz, autora de “O homem não existe”
“Meu mestrado e doutorado (em neurociências) foi com o modelo animal, com rato mesmo, estudando o sistema de gratificação. E o romance começou a surgir quando eu estava terminando a última fase do doutorado. Tanto na literatura como na ciência você projeta um negócio, mas nunca sabe o que vai acontecer. E aí é assim: ou desiste e larga, ou fica ali buscando uma solução. Tem uma coisa também de trabalhar muito no escuro, sozinho. E, às vezes, você não vai ter recompensa nenhuma.”
Fernanda Teixeira Ribeiro, autora de “Cantagalo”
Uma troca de ideias entre a autora de um dos lançamentos mais elogiados da literatura brasileira deste ano e a ensaísta que publicou um dos títulos de não ficção de maior repercussão de 2024. Assim foi o encontro, no Estado de Minas, da escritora Fernanda Teixeira Ribeiro, do romance “Cantagalo” (Todavia), com a professora e crítica literária Ligia Gonçalves Diniz, de “O homem não existe: masculinidade, desejo, ficção” (Zahar), para mais uma edição do podcast do Pensar.
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Nascida em Uberaba e radicada em São Paulo, Fernanda está em Belo Horizonte para divulgar a estreia como romancista: depois da Livraria da Rua, no último sábado, às 16h de hoje a sessão de autógrafos será na Livraria do Belas, em roda de conversa com mediação de Ingrid Silva. “Nesse filhote bastardo de Henry James com Júlia Lopes de Almeida, o leitor depara com uma linhagem do realismo que, por meio da habilidade em transitar do narrador (parcamente) impessoal às consciências e nuances dos personagens, nos mostra que não há uma realidade neutra e imparcial, mas realidades pessoais, confusas e incongruentes”, comentou Ligia Diniz a respeito de “Cantagalo”, em resenha publicada na revista Cult.
Professora de teoria de literatura na UFMG, Ligia destacou ainda em “Cantagalo” a dicção que, “em vez de copiar de forma banal a linguagem da virada do século, inventa um modo próprio de produzir em nós a sensação de estarmos lendo algo antigo e provinciano”.
Na conversa, Fernanda e Ligia comentaram aspectos estruturais e temáticos de seus livros e elegeram os romances brasileiros que mais as marcaram como leitoras. Leia, a seguir, os principais pontos da entrevista realizada na última quarta-feira (4/6).
Ligia, você afirmou, ao escrever sobre “Cantagalo”, que Fernanda encontrou a forma literária adequada para recontar o momento-chave da formação da sociedade brasileira. Qual é essa forma destacada em sua resenha?
Muitas coisas me impressionaram no romance da Fernanda. Uma prosa tão segura e tão bem realizada, ainda mais no primeiro romance. Mas em relação à forma adequada: a gente está falando da virada do século 19 para o século 20, em um contexto pós-abolição da escravatura, mas de intenso racismo. O que eu acho é que a Fernanda consegue trazer essa violência do racismo, essa transformação política muito mais lenta e complicada do que a gente é acostumado a pensar quando aprende no colégio. “Cantagalo” não é maniqueísta.
A gente tem as personagens negras, brancas, as que são filhos de brancos com pretos... E ela distribui, vamos dizer assim, as qualidades morais entre esses personagens todos, de modo que a gente não tem vilões e mocinhas, vítimas absolutas e algozes que só fazem coisas horríveis. Ela consegue, de fato, articular um romance feito de pessoas com suas qualidades e defeitos, algumas com mais defeitos do que outras, mas elas são críveis. E ela faz isso com uma linguagem que faz com que esses personagens em a existir na nossa cabeça. Essa maturidade chama atenção em um livro de estreante.
Fernanda, por que a escolha desse momento-chave da formação social brasileira?
É um período histórico que me interessa pela quantidade de conflito que há nele. Ali começou a República, foi o o pós-abolição... Se a gente for pensar em ciência, começam a se popularizar as teorias de Darwin e Mendel, a psicanálise aparecendo lá na Europa.. Consumi muita literatura desse período também, então eu acho que eu tinha algo ali internalizado, uma vontade de falar disso.
(De Ligia para Fernanda) Você disse que consumiu muito literatura dessa época. Eu fiquei muito curiosa lendo seu livro. Quais autores?
Eu ia achando o que tinha na biblioteca. Li muito Machado (de Assis), Eça de Queirós. Eu queria falar com uma voz de hoje, mas dentro de um léxico que eu ficava à vontade. Li bastante também a geração de 1930 do Brasil, acho que fui internalizando esse pessoal.
Fernanda, ainda na resenha sobre o livro, Ligia destaca a dicção da narrativa. Como você chegou nessa dicção?
Foi sendo descoberta ao longo do livro. Se pegar meus primeiros rascunhos, ela ainda não está presente. Era uma coisa que me incomodava. Eu ficava ali pensando como eles poderiam falar e como narrar de um jeito que também casasse com a forma com a qual eles estavam falando. E eu me lembro que eu estava nesse bate-cabeça e um amigo, que é um leitor crítico, leu e falou assim: “Nossa, eu gosto muito da história mas a linguagem tá muito aquém.” Aí ele marcou um pedacinho e falou: “Sim”. Achei bonito que ele escreveu assim: “Seu bordado tá aqui”. Aí comecei a desenvolver a partir disso, a retrabalhar a linguagem.
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Ligia, você acredita que, de alguma forma, “Cantagalo” se filia a uma certa tradição de grandes romances da literatura brasileira?
Sem dúvida. Se a gente pensar na literatura contemporânea, que tem tido uma tendência de lançar romances pequenininhos... O que a gente chamava antes de novela agora vem sendo chamado de romance. Mas acho que é mais do que a extensão. O que me leva a colocar “Cantagalo” nessa categoria de ‘romanção’ é a densidade da trama. De maneira objetiva: a quantidade de personagens, de fases, de gerações mesmo, que são organizadas de uma maneira complicada, mas orgânica ao mesmo tempo.
Até brinquei, no texto que escrevi, que tem de se fazer um organograma para entender a relação de todos os personagens. Pensando em influências estrangeiras, lembro de “Anna Karenina”, de Tolstói: claro, um romance muito mais longo, mais denso em outros sentidos, mas que promove essa conversa entre vários personagens.
Ligia, em “O homem não existe”, você defende o questionamento “dos efeitos que a experiência de uma tradição literária longamente masculina produz na consciência dos leitores e das leitoras”. E a Fernanda, ao citar leituras marcantes, citou autores como Stendhal, Erico Verissimo e Jorge Amado. Esse foi um dos pontos que você quis abordar em seu livro?
Com certeza, mas eu quero ainda falar da Fernanda, quando ela citou os livros que leu, só para dizer: Jovens, se vocês querem escrever, não fiquem só fazendo cursos de escrita. Leiam! Agora, sobre a sua pergunta sobre o meu livro: é o lance da leitura. A gente lê para, evidentemente, entender a trama, refletir sobre o que o enredo tá contando para a gente, mas a gente lê sentindo, dando corpo para esses personagens. Mais do que reagir, a gente age.
Tem essas letrinhas todas na página e a gente precisa de um jeito de dar vida para essas letras. Um livro é, na verdade, uma série de instruções, um texto todo cheio de buracos que a gente tem que preencher com a nossa imaginação. A gente vai lendo e meio que vivendo várias vidas. E empresta nosso corpo para esses personagens. Fiquei pensando no fato de eu ter dado o meu corpo, a minha imaginação para tantos personagens masculinos, com as suas aventuras masculinas. Isso entrava em embate com a minha vida de mulher, no meu presente histórico, no meu lugar. Refleti sobre o que significava a tensão entre esses dois tipos de experiência. É um livro muito pessoal.
Um dos capítulos do livro de Ligia chama-se “No princípio era a fúria”. Nele, é destacado que a associação entre raiva e mulheres é frequentemente tratada em termos negativos. Fernanda, como a raiva e outros sentimentos movem as personagens de “Cantagalo”?
(Fernanda) É interessante essa pergunta porque a sociedade vê de forma diferente a manifestação de emoção em homens e mulheres. E (enquanto escrevia o livro) eu ficava pensando como os sentimentos movem os personagens. Porque isso se relaciona muito com a minha área, a neurociência. Estudei o sistema de recompensa cerebral, que tem a ver com inibir emoção e gratificação. Seria assim, basicamente: o quanto você segura um impulso para receber uma gratificação maior no futuro. E, agora que você falou, me veio uma coisa na cabeça: acho que sempre pensei no quanto os meus personagens lidam com o impulso. Quem controla mais e quem controla menos.
E como esses sentimentos aparecem em seu livro, Ligia?
Meu livro tem doze capítulos. A raiva e a melancolia são sentimentos que aparecem na última parte do livro, mas já estavam na intenção do projeto. Pensar como essas duas emoções, esses dois afetos, a raiva e a melancolia, eram forças que moviam boa parte da literatura que me encantava. Uma literatura escrita não só por homens, mas sobretudo por homens. E como elas são mostradas de uma certa perspectiva em que a raiva era um valor masculino, no sentido de mover o homem em direção de atitudes não só corretas, mas bonitas.
E a melancolia é, por outro lado, muito atrelada à questão da inteligência masculina, um certo cinismo. A gente é ensinado que a mulher perde a cabeça, é histérica, nervosa, descontrolada. E quase nunca isso é atribuído aos homens. É uma coisa que me incomoda profundamente porque às vezes eu grito mesmo porque o homem fala mais alto. A minha voz é mais baixa, mais fraca, às vezes eu preciso gritar para me destacar. E aí, claro, fica parecendo muito mais nervosa.
O que mais incomoda vocês, mulheres, em personagens femininos escritos por homens?
(Ligia) O excesso de sentimentos sem graça. Como a afetividade maternal, Não necessariamente de uma mãe, mas o cuidado excessivo. A mulher como esse ser que cuida. Cuidar é muito ivo. Não estou dizendo que o cuidado não é importante: claro que é. Mais do que importante, é essencial. Mas, em termos de construção de narrativas, de desenvolvimento de enredo, as mulheres acabam ficando nesse lugar de coisas que não acontecem enquanto os homens movem enredos adiante.
(Fernanda) É isso que incomoda. Parece que a mulher está ali para a história do homem se desenvolver. Eu vejo isso em livros contemporâneos focados no personagem masculino, a mulher está ali orbitando, mas as ações são conduzidas por homens.
Vamos falar, agora, de leitura marcantes. Por que “S. Bernardo”, de Graciliano Ramos, é tão especial para você, Ligia?
A gente tem o Paulo Honório, um narrador extremamente machista, extremamente violento com os empregados, racista, mas, no final, ele está apenas perplexo com o que fez da própria vida. É um personagem que traz isso que eu valorizo mais do que qualquer coisa: a complexidade. No final dos contas, no sentido mais da contradição mesmo, de ser humano. Então, acho que é um romance que a gente pode ler de diversas perspectivas.
E você, Fernanda?
É um livro aparentemente de uma estrutura muito simples mas me chama muita atenção: “Ana Terra”, de Erico Verissimo. A primeira vez que li eu tinha 12, 13 anos. Ele me trouxe ali muito do que eu vejo que a literatura me traz. Eu era praticamente uma criança e é um livro no qual a personagem sofria um estupro coletivo. E você com 12, 13 anos consegue ter uma noção do que é aquilo; parece que desenvolve, junto com ela, recursos para lidar com aquela violência. Acho que isso me trouxe, não de uma forma clichê, uma história de superação e que vai sendo conduzida de um jeito muito interessante.
Fernanda, você tem doutorado em neurociências. Qual a conexão que consegue estabelecer entre literatura e ciência?
Meu mestrado e doutorado foram com o modelo animal, com rato mesmo, estudando o sistema de gratificação. E e o romance começou a surgir quando eu estava terminando a última fase do doutorado. Tanto na literatura como na ciência você projeta um negócio, mas nunca sabe o que vai acontecer. E aí é assim: ou desiste e larga, ou fica ali buscando uma solução. Tem uma coisa também de trabalhar muito no escuro, sozinho. E, às vezes, você não vai ter recompensa nenhuma. Tem de ter um prazer em desenvolver e, às vezes, você abstrai a questão do olhar do outro.
Ligia, e a relação da psicanálise com a literatura?
Definitivamente, não sou uma especialista em psicanálise. É uma leitura que gosto de fazer, mas, mesmo dentro da teoria literária, não é um caminho que eu sigo. Mas reconheço que o discurso psicanalítico é um dos discursos culturais mais influentes do século 20. Seria muito estranho falar da relação homem-mulher sem falar da psicanálise. E há dois aspectos que unem as duas dimensões.
O primeiro é a dimensão da narrativa: são duas tentativas, dois esforços, duas experiências de transformar realidade em narrativa. Mesmo que seja uma realidade, no caso, da ficção, uma realidade inventada, uma realidade imaginada, mas transportar um mundo inteiro para uma forma linguística. Você reduz um mundo, o transformando em texto para que esse mundo seja novamente expandido na cabeça do leitor, no caso da literatura.
Então, há o esforço de transformar o mundo em linguagem. E a outra questão é o foco na consciência humana. A psicanálise vai jogar com as emergências do inconsciente ou do real lacaniano. O que significa ser gente? Ou indo para algumas incursões mais experimentais, o que significa ser um animal? Experimentar sensorialmente o mundo e tentar compreendê-lo dessa forma. São duas formas de proceder essa mesma investigação.
“Cantagalo”
• De Fernanda Teixeira Ribeiro
• Todavia
• 288 páginas
• R$ 84,90
• Lançamento neste sábado (7/6), às 16h, com mediação de Ingrid Silva, na Livraria do Belas (Rua Gonçalves Dias, 1.581, Lourdes, BH)
“O homem não existe: masculinidade, desejo, ficção”
• De Ligia Gonçalves Diniz
• Zahar Editora
• 416 páginas
• R$ 52