Natalia Timerman autografa seu livro de estreia em BH
"Desterrros", lançado em 2017, ganhou reedição pela Todavia, com prefácio e posfácio novos. Autora participa do lançamento, nesta sexta (6/6), na Quixote
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Siga noDonamingo é uma angolana de 32 anos que adora dançar. Ficar até de madrugada nas festas não era um problema, mesmo que ela pouco bebesse. Drogas nunca foram a dela – além do mais, não havia dinheiro para tal.
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Sua história foi interrompida depois de que ela aceitou voar de Luanda para São Paulo trazendo uma grande bagagem de sapatos. A viagem resultou em uma pena de sete anos por tráfico, o que a separou de seu país, de seu marido e de sua filha. Descobriu-se grávida numa prisão brasileira.
O nome é uma criação – foi escolhido pela personagem real –, mas todo o resto é verdade. Donamingo é a protagonista de “Desterros – Histórias de um hospital-prisão”, livro de estreia de Natalia Timerman. Publicado em 2017, teve duas edições pela Elefante. Ganha agora nova edição, revista pela autora, que sai pelo selo Todavia. Nesta sexta-feira (6/6), a partir das 19h, ela autografa o livro na Quixote Livraria, em Belo Horizonte.
Psiquiatra de formação, Natalia, de 44 anos, atuou, entre 2012 e 2020, no Centro Hospitalar do Sistema Penitenciário (CHSP), no bairro do Carandiru, a única instituição voltada para os presos de São Paulo. Foi a partir dos atendimentos que realizou ali que nasceu o livro de não ficção. A trajetória de Donamingo entremeia toda a narrativa, mas há outras personagens.
Releitura
Em 2014, a partir de sua experiência no CHSP, Natalia publicou sua dissertação em psicologia clínica pela Universidade de São Paulo (USP). “Desterros” é um desdobramento do mestrado. Para a edição da Todavia, com prefácio e posfácio novos, a escritora consagrada pelos romances “Copo vazio” (2021) e “As pequenas chances” (2023) – juntos, os dois títulos venderam mais de 50 mil exemplares – teve que se reler.
“Foi um processo de me rever e rever as mudanças da linguagem e do nosso olhar para a escrita e para o mundo. Algumas coisas que eu tinha em 2017, como, por exemplo, chamar de homens os seres humanos, não ito mais. Talvez eu esteja um pouco menos ingênua na construção de um livro. Senti que explicava demais algumas coisas, que repetia para garantir que o leitor entendesse. Aprendi a confiar no leitor. Mas também foi bonito perceber como a história continua viva”, afirma.
Olhando para trás, Natalia comenta que, quando foi escrever “Desterros”, seu antigo editor falou que, como não havia compromisso acadêmico, ela poderia inventar o que quisesse. “Até tentei, mas percebi que o texto ficava pobre, não chegava onde eu queria. Eu não podia inventar a história de uma pessoa que existe.”
Ela acrescenta: “Acho que vivemos um tempo em que se lê tudo com uma chave autobiográfica, mesmo que seja ficcional. Existe a discussão até sobre a porosidade entre os gêneros literários. Só que, nesse caso, é importante demarcar que não é ficção, mesmo que exista um trabalho de linguagem.”
A estreia de Natalia na ficção foi em 2019, com a antologia de contos “Rachaduras”. Depois vieram os dois romances, mais o infantil “Os óculos de Lucas” (2022). Ela credita a “Copo vazio” a obra que a cristalizou como escritora. A história fala do sumiço de um namorado, o chamado “ghosting”. “É total ficção, mas tem quem ainda insista em dizer que é autobiográfico.”
A literatura não afastou Natalia do consultório. “Vou todos os dias, mas não atendo o dia inteiro. Faço um esforço para manter abertos os espaços de escrita, mas as demandas vão se impondo. Quando fico muito tempo sem escrever, parece que algo em mim saiu do eixo. A escrita é muito ambivalente, pois ela também me afasta de coisas importantes. Então escrevo nos fins de semana, à noite, quando estaria com a família. Nesse sentido, considero a escrita uma maldição.”
Recentemente, ela viveu uma experiência nova. “Tive um mês inteiro para escrever”, conta a autora, que voltou, no final de abril, de uma temporada de residência literária no projeto Art Omi: Writers, no interior do estado de Nova York. Foi durante esse período que avançou na escrita de seu próximo livro. Será sobre sua mãe e o Alzheimer. Não-ficção? Autoficção? “Ainda não sei o que vai ser”, afirma.
TRECHO
“Donamingo tinha uma amiga que namorava um traficante. Amiga de uma amiga, ela se corrige. Soube que ele estava procurando alguém para trazer coisas do Brasil. Você sabia o que era?, pergunto. “Achei que era sapato. Eu ia ganhar 5 mil reais. Com esse dinheiro dava pra viver três anos lá em Luanda. Fiquei contente”, ela diz, insistindo em alguma inocência inútil diante do desfecho da história. “Ele ia me dar o dinheiro na volta, quando eu entregasse as coisas.” Eu poderia pensar que, por fim, a sorte que a avó Donamingo anunciara recairia sobre a neta, se não tivesse à minha frente, viva, comendo pão com queijo e tomando café com leite, a prova contrária disso.”
“DESTERROS – HISTÓRIAS DE UM HOSPITAL-PRISÃO”
• Natalia Timerman
• Todavia (176 págs.)
• R$ 69,90 (livro) e R$ 49,90 (e-book)
• Nesta sexta (6/6), às 19h, a autora faz sessão de autógrafos na Quixote Livraria (Rua Fernandes Tourinho, 274, Savassi).