Em sua emblemática crônica antropológica Relativizando, Roberto DaMatta nos convida a um exercício fundamental, mas cada vez mais raro no Brasil da pós-verdade: o de suspender nossos juízos automáticos e tentar entender o outro a partir de suas próprias categorias. A máxima é simples: não julgue uma cultura com os olhos da sua. Mas quando se trata da mestiçagem brasileira, esse princípio é, quase sempre, atropelado por paixões ideológicas, revisionismos ansiosos e uma necessidade crônica de encaixar o ado em nossas ansiedades do presente.

Podemos considerar esse ensaio como um antídoto contra o etnocentrismo. Relativizando nos convida a praticar um exercício que parece cada vez mais herético: o de suspender o próprio juízo e tentar compreender o outro com as ferramentas do outro. Difícil? Sem dúvida. Necessário? Mais do que nunca. Indispensável para o brasileiro, que, para além do homem cordial, pode ser caracterizado como um povo que tem pressa em concluir.

O Brasil, como laboratório de impurezas e encruzilhadas civilizatórias, é um campo minado para quem busca explicações fáceis. A mestiçagem surge, então, como um grande debate. Afinal, o que foi o Brasil colonial? Uma história de estupros sistemáticos ou uma complexidade social moldada em práticas, alianças e estratégias culturais múltiplas?

A pergunta é legítima, mas só tem resposta honesta se armos pela trilha estreita do relativismo antropológico. E, claro, pela via social — e não de narrativas militantes que trocam a cruz do colonizador pela foice do anacronismo.

Comecemos com os Tupi. Muitos indígenas dessa família linguística praticavam o chamado cunhadismo — um sistema de aliança baseado na oferta de uma mulher (geralmente irmã ou filha) a um estrangeiro que desejasse se integrar à tribo. O gesto, que pode parecer submissão ou violência à luz de nossa moral contemporânea, tinha um sentido profundo: a criação de vínculos sociais duradouros. Quem recebia a mulher, tornava-se cunhado — e, com isso, ganhava obrigações rituais, filiações políticas e deveres comunitários. Era uma forma de absorver o outro no coletivo.

Darcy Ribeiro entendeu isso. Em O Povo Brasileiro, o antropólogo descascou o mito da pureza racial e mostrou que o Brasil nasceu da colisão (violenta, sim, mas também criativa) de três matrizes: a indígena, a africana e a europeia. Ele não romantizou a colonização, mas tampouco caiu na tentação de explicá-la apenas como estupro. Preferiu falar de “antropofagia cultural”.

Agora, vem a genética e joga mais luz sobre esse drama trágico e fascinante. Uma pesquisa coordenada pelo Centro de Estudos do Genoma Humano da USP, publicada recentemente, analisou mais de 2.000 genomas de brasileiros e revelou um padrão impressionante: a maioria esmagadora dos brasileiros tem DNA indígena ou africano na linhagem materna (mtDNA) e europeu na linhagem paterna (cromossomo Y).
Traduzindo: nossos ancestrais, em termos genéticos, foram majoritariamente mulheres indígenas e negras, e homens europeus. A colonização se deu pelo ventre da mulher colonizada — e pela espada (ou o falo) do colonizador.

Esse dado pode ser usado, como tem sido, para reforçar a ideia de que a mestiçagem foi exclusivamente fruto de estupro. Mas isso, embora contenha uma profunda verdade histórica, é metodologicamente insuficiente. Primeiro, porque projeta um padrão homogêneo para um território continental e para três séculos de história. Segundo, porque desconsidera práticas autônomas como o cunhadismo e outras formas de aliança entre indígenas e colonos.

Essa leitura reduz a história da mulher indígena à ividade. Quando, na verdade, como mostram várias etnografias, ela teve agência, redes de poder e estratégias próprias. É claro que isso não nega o abuso. Mas o abuso não explica tudo. Como nos alerta DaMatta, relativizar não é desculpar, é complexificar.

Aliás, outro problema sério: julgar essas práticas com critérios do século XXI. No século XVIII, sequer havia censos sistemáticos. A “raça” era antes uma combinação fluida de status, cor percebida, inserção social e batismo. Era possível um filho de mãe indígena ser considerado “branco” se vivesse entre brancos e vestisse como tal. Os registros, quando existiam, eram paroquiais, subjetivos e ideologicamente enviesados.

Avaliar esse mundo com as categorias de hoje — como “privilegiado”, “marginalizado” ou “invisibilizado” — é correr o risco de cometer um anacronismo analítico: exigir do ado a coerência de nossos dilemas atuais.

Um europeu do século XVI — digamos, um missionário jesuíta entusiasta da castidade — poderia muito bem ver ali promiscuidade, desvio moral, pecado original tropical. Já um antropólogo contemporâneo como Darcy Ribeiro leu ali uma sofisticada engrenagem social: uma forma de aliança, não de dominação. Mas o olhar do colonizador, e mais tarde o intelectual descontextualizado, transformou o gesto em pecado. Aqui entra DaMatta com seu bisturi relativista: o que vemos como escândalo pode ser, para o outro, norma. Mais ainda — pode ser ética.

Julgar esse tempo com os códigos do IBGE ou com os filtros do movimento identitário do século XXI é incorrer em anacronismo metodológico — um pecado capital para quem leva a sociedade a sério. Como lembra Peter Burke, ao estudar culturas do ado é preciso “descolonizar o olhar”, livrá-lo dos vícios do presente e do moralismo de gabinete.

Portanto, relativizar — no bom sentido que DaMatta nos ensinou — é mais urgente do que nunca. É recusar o conforto de julgamentos fáceis, é aceitar o risco da ambiguidade. É lembrar que a História não é tribunal de pequenas causas, mas um campo minado de complexidades. E que às vezes, o que parece um gesto de violência pode ser, sob outra ótica, um pacto de pertencimento.

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Parece que a esquerda brasileira perdeu aquilo que era uma das suas grandes virtudes: o pensamento complexo, priorizando a relativização dos fenômenos, como um sinal de inteligência e profundidade de análise. Premissa metodológica que sempre foi demonizada pela direita conservadora que, legitimamente criticada pelos intelectuais brasileiros, era sempre universalista, sonhando com valores imutáveis. A roda da fortuna mudou os lugares e o pensamento progressista desconsiderou o alerta nietzschiano: cuidado ao brigar com monstros, pois você pode acabar se tornando um deles.

No lugar de respostas rápidas, talvez seja hora de devolver ao debate sobre mestiçagem a sua densidade perdida. Nem mito da democracia racial, nem inferno de estupros contínuos. Apenas — e isso já é muito — um processo histórico humano, contraditório, impuro e profundamente brasileiro.

A partir desse entendimento, a pergunta fica mais inteligente: como construir uma memória que reconheça a violência estrutural sem apagar as formas locais de resistência e negociação cultural? Como criticar a dominação sem infantilizar os dominados?

Talvez a resposta esteja na nossa própria biologia: somos o resultado de uma mestiçagem genética, cultural e simbólica. Fruto de estupros, sim — mas também de afetos, pactos, fugas, alianças e ambiguidades. A mestiçagem brasileira não é um romance edulcorado, nem uma crônica de horror puro. É uma narrativa incompleta, complexa, incômoda — e, sobretudo, viva.

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